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Achei um pesadelo na Steam

Garimpar game nacional na principal loja virtual pode virar um esporte do tipo que exige preparo físico, mental e fôlego de mergulhador.

Renato Degiovani05-2017

Existem dois tipos de desenvolvedor: o que foca todo o seu potencial naquilo que ele considera ser o melhor (o conhecido autor de uma ideia genial) e o que adapta as suas pretensões ao comportamento daqueles que irão (supostamente) consumir o seu produto, sem perder obviamente a sua linha de pensamento. O primeiro não chega a ser um caso perdido, mas tende a isso quanto mais ele tentar impor, ao desenvolvimento do jogo, suas concepções únicas de diversão - "vou fazer o jogo que sempre quis jogar" em oposição ao "vou fazer o jogo que sempre quis fazer". São coisas diferentes.

Para aqueles que dão ouvido ou prestam atenção ao que está ao redor, fica a dica: uma das informações mais importantes que se pode buscar é como as pessoas tem acesso aos jogos que elas jogam. É disto que trata esse texto.

Ao longo de uma semana, fiz uma pesquisa informal (todos deveriam fazer uma dessas pelo menos) focando o universo das pessoas do meu círculo pessoal de relacionamento físico (não virtual, pra ficar bem claro). Dos mais novos (3 anos) aos mais velhos (68 anos) todos responderam a pergunta "você joga joguim?" com um sonoro SIM. Ou seja, somos uma nação de jogadores como bem apontam as pesquisas feitas neste setor. Assim sendo, o potencial para produções direcionadas a este mercado é gigantesco.

A segunda questão proposta foi "como você tem contato com novos joguinhos?". Sem entrar em muitos detalhes, ficou claro que quem prefere os dispositivos móveis acessa as stores nativas do seu sistema, via indicação de amigos, facebook, whatsapp, etc. Já o pessoal que joga nos computadores conhece bem algumas páginas de coletâneas, à lá UOL, onde saltitam entre inúmeras opções. Em comum, com todos jogadores e dispositivos, a gratuidade como condição imprescindível. Neste modelo, até mesmo os freemiuns estão patinando: jogar sim, pagar, raramente (e põe raro nisso pois até o pessoal que gastou com "fazendinha" e assemelhados não entra mais neste modelo).

Muita gente boa nunca ouviu falar sobre a Steam ou sequer sobre jogos brasileiros nela.

Esses dados valem para a jogatina casual de todo santo dia, ou seja, aqueles momentos de descontração ou de diversão pura, para os mais novos. Mas quando subimos um degrau na escala de comprometimento com o "esporte" a coisa complica um pouco. Não é que as pessoas, pelo menos as que podem fazer isso, não comprem games. Elas simplesmente não tem um acesso facilitado aos mecanismos modernos. Não é como entrar na loja ao lado, pegar um CD/DVD, passar no caixa e ir pra casa (embora isso ainda ocorra muito no segmento dos consoles, em especial dos mais modernos, e dos jogos AAA). A questão passa essencialmente por divulgação.

Senão vejamos: dos pesquisados, apenas um ou outro declarou conhecer a Steam (pra ficarmos apenas num exemplo). A grande maioria nunca ouviu falar. Mesmo depois de uma rápida introdução à loja e sua estrutura otimizada de funcionamento, ficou aquela sensação tipo "tá, mas e daí?".

Daí que, concluo eu, nunca se fez de fato uma avaliação acerca do comportamento dos jogos brasileiros na mãe de todas as lojas virtuais, justamente aquela cantada em prosa e verso como o destino inexorável dos games nacionais compráveis, principalmente depois que foi instituído o esquema de curadoria. É isto que proponho aqui...

Conheço, embora não profundamente, o funcionamento da loja como consumidor. Tenho o aplicativo dela instalado no meu computador principal e alguns poucos jogos. Uns eu comprei, outros eu ganhei. Quase todos jogos brasileiros.

Então, vamos supor por um momento, que eu acordei hoje com vontade de jogar um jogo novo. Um jogo que eu não conheça, ou não tenha jogado ainda, mas que seja nacional. O que vai determinar a minha escolha não é nada específico ou científico mas já descarto qualquer jogo que seja no estilo infantil, desses que formam a base das coletâneas - já que vou comprar, quero algo que seja mais, digamos, consistente.

Pra facilitar e contornar a minha deficiência no trato com o funcionamento do aplicativo Steam, vou começar da forma mais tradicional possível: google - jogos brasileiros na steam.

De cara uma surpresa - existem várias matérias e textos do tipo "melhores jogos br na steam", "os 11 melhores jogos...", "os jogos br que você precisa jogar.." etc. Essas listas apontam sempre para meia dúzia de games que, independentemente das suas qualidades (conheço todos eles) nos dá a sensação de que a produção nacional é só isso. Não é, mas no mundo moderno não basta ser - tem que que parecer que a produção tupiniquim é bem maior do que os mesmos de sempre.

Este é um dos problemas que o mercado produtor nacional não vem atacando de frente e sequer está dedicando tempo para discutir e entender o quanto ele interfere na consolidação da ideia de uma industria. O conceito de indústria brasileira de jogos não pode apoiar apenas nos jogos em si, mas também na sua circulação e principalmente na sua divulgação. Fazer o jogo é só metade do processo todo.

A grande maioria dos jogos br tem nomes em inglês.

Ainda não desisti de encontrar um jogo br, para jogar neste final de semana, que eu não conheça ou pelo menos ainda não tenha jogado. O destaque do google vai para uma das listas de curadores e é por ela que pretendo começar. Existem várias listas de curadores e só isso já é motivo para um novo texto. Vou concentrar a atenção na primeira indicação googliana.

Descrever um game com uma única frase é uma arte que nasceu lá nos anos 80, com as softhouses publicando em apenas uma página de revista dezenas de títulos importabandeados. Pelo que pude perceber não houve uma evolução muito grande neste quesito. Por outro lado, não pretendo aprofundar em nenhuma análise ou avaliação dos curadores. Apenas praticar o salutar esporte da compra por impulso, navegando por prateleiras, como num supermercado. Acreditem, muita gente faz isso.

- não,
- não,
- nem pensar,
- não,
- nunca,

Constatação: a esmagadora maioria dos jogos tem nome em inglês, o que deixa a dúvida de que estou realmente numa lista de jogos brasileiros. Neste ponto a frase descritiva em português não ajuda muito, uma vez que praticamente toda a steam está em pt-br e portanto esse detalhe não é mais suficiente para destacar um game genuinamente brazuca.

- não,
- não,
- talvez, mas não
- não,
- não,
- caro,
- muito caro,

Primeira escolha: adoro jogo de avião e, embora esse esteja caro, não custa nada dar uma olhada. Não tem versão em pt-br, aparentemente não está pronto ainda e realmente é caro demais para o que propõe. Mesmo sendo bonitinho e bem feito, não. Continuando...

- não,
- não,
- já conheço,
- não,
- não,
- conheço e não gostei,
- não,
- hmmmmm, não,
- ah, esse é muito bom, mas já tenho,
- não,
- ...

A lista já está quase chegando ao seu final e até agora nada.

Opa, Pesadelo. Gostei do título, gostei do preço R$ 9,90. Gostei até da frase, embora soe pretensiosa demais pro meu paladar. Já teve um jogo com esse nome ou estou apenas delirando? Lembro que teve sim, deu pano pra manga e talvez a frase descritiva não seja tão pretensiosa quanto pensei no começo. Vamos aos detalhes, já que a curiosidade dobrou de tamanho...

Narrado e legendado em pt-br. Descrição ok. O vídeo mostra uma produção de qualidade Unreal matadora. O tema é instigante, embora eu considere que jogo de "medo" não causa tanto medo assim, em ninguém.

Agora vem o melhor, o que eu mais gosto na Steam, aquilo que "no meu tempo" era um sufoco dos grandes: comprar. Não levou nem um minuto para a compra ser aprovada. Mais uns 3 minutos e a Steam já me avisa que está liberado para jogar. Nada como a modernidade e realmente é um desperdício que algumas almas penadas não consigam ver o quanto estão perdendo por conta de uma intransigência obtusa.

Ah, o game? Fica pra outra matéria: as primeiras impressões sobre Pesadelo - Regressão.

:: Link para a lista de curadores br na Steam

:: Gostou do texto? Aqui tem mais...

Renato Degiovani é game designer e produtor de jogos desde o começo da década de 80. Foi editor da revista Micro Sistemas e produz o site TILT online desde 1997.